segunda-feira, dezembro 29, 2003
Antes que voltes a partir
Já partias para longe ainda andava eu às voltas com livros na escola. Ias, vinhas, estavas quando podias. Nunca ficavas muito tempo no mesmo sítio, pois havia que chegar sempre um pouco mais longe. Sempre foste uma espécie de fantasma que voltava esporadicamente, com um sorriso enigmático e inúmeras histórias de locais longínquos e pessoas estranhas. Eras para mim uma lenda que poucos conheciam, naqueles tempos. Depois o tempo inadiável continuou a encurtar os nossos dias e as coisas mudaram. Os anos mudaram muitos aspectos na vida de todos.
E quem vive a uma velocidade superior ao normal, quem faz do sítio onde calha estar a sua casa, tem dificuldade em parar. Não se passa com facilidade de uma vida repleta de riscos, incertezas e ideais, feita a pulso em cantos esquecidos do mundo, para uma vida tradicional num país onde há muito os homens desistiram de perpetuar os sonhos e feitos épicos do passado.
E agora que te vejo, com marcas precoces do tempo na tua face, sugiro-te que abrandes a velocidade, que não procures em todo o mundo, a toda a hora, o que não existe em mundo nenhum, pelo menos neste. Mas a tua esperança é inquebrantável. Mesmo perante a certeza do carácter ilusório da esperança. O teu sorriso e a tua voz transpiram os teus pensamentos, grandes demais para um simples homem, e o teu é o riso de um homem forte. É bom poder ver-te e ouvir-te de novo. E rir. Mas percebo a tensão que se tem vindo a instalar, quase imperceptivelmente, na vida à tua volta. Já o senti no timbre da tua voz. No teu ar aéreo. O teu olhar procura incessante no horizonte. E sei perfeitamente o que se vai passar. Antes sequer de pensares nisso, já partiste uma vez mais.
Para o G.
Bitaites-[ Bitaites.]
E quem vive a uma velocidade superior ao normal, quem faz do sítio onde calha estar a sua casa, tem dificuldade em parar. Não se passa com facilidade de uma vida repleta de riscos, incertezas e ideais, feita a pulso em cantos esquecidos do mundo, para uma vida tradicional num país onde há muito os homens desistiram de perpetuar os sonhos e feitos épicos do passado.
E agora que te vejo, com marcas precoces do tempo na tua face, sugiro-te que abrandes a velocidade, que não procures em todo o mundo, a toda a hora, o que não existe em mundo nenhum, pelo menos neste. Mas a tua esperança é inquebrantável. Mesmo perante a certeza do carácter ilusório da esperança. O teu sorriso e a tua voz transpiram os teus pensamentos, grandes demais para um simples homem, e o teu é o riso de um homem forte. É bom poder ver-te e ouvir-te de novo. E rir. Mas percebo a tensão que se tem vindo a instalar, quase imperceptivelmente, na vida à tua volta. Já o senti no timbre da tua voz. No teu ar aéreo. O teu olhar procura incessante no horizonte. E sei perfeitamente o que se vai passar. Antes sequer de pensares nisso, já partiste uma vez mais.
Para o G.
domingo, dezembro 28, 2003
La Rosa
La rosa,
la inmarcesible rosa que no canto,
la que es peso y fragrancia,
la del negro jardín en la alta noche,
la del cualquier jardín y cualquier tarde,
la rosa que resurge de la tenue
ceniza por el arte del alquimia,
la rosa de los persas y Ariosto,
la que siempre está sola,
la que siempre es la rosa de las rosas,
la joven flor platónica,
la ardiente y ciega rosa que no canto,
la rosa inalcanzable.
Jorge Luís Borges, "Fervor de Buenos Aires"
Bitaites-[ Bitaites.]
la inmarcesible rosa que no canto,
la que es peso y fragrancia,
la del negro jardín en la alta noche,
la del cualquier jardín y cualquier tarde,
la rosa que resurge de la tenue
ceniza por el arte del alquimia,
la rosa de los persas y Ariosto,
la que siempre está sola,
la que siempre es la rosa de las rosas,
la joven flor platónica,
la ardiente y ciega rosa que no canto,
la rosa inalcanzable.
Jorge Luís Borges, "Fervor de Buenos Aires"
terça-feira, dezembro 23, 2003
Feliz Natal
Desejo a todos um Bom Natal e queria deixar aqui um poema do Fernando Pessoa que, sem ter a ver com o Natal, lembra-me uma noite de Consoada muito fria e calma como um dia que se tivesse atrasado eternamente.
Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo...
Tenho dó delas.
Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?
Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir...
Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão -
Qualquer coisa assim
Como um perdão?
Fernando Pessoa, Cancioneiro, 1929
Bitaites-[ Bitaites.]
Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo...
Tenho dó delas.
Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?
Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir...
Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão -
Qualquer coisa assim
Como um perdão?
Fernando Pessoa, Cancioneiro, 1929
domingo, dezembro 21, 2003
Silent night
Quando me convidaram para aquele jantar pensei em recusar o convite. Tinha pensado num fim de semana mais recatado, nada que se parecesse com aturar a cerimónia e protocolo de um jantar de gala. Mas vi o entusiasmo que te dançou nos olhos e te elevou o tom de voz. E nada disse, até porque também não é todos os fins de semana que se janta no Palace. E foi com toda a simplicidade e deslumbre da tua beleza a meu lado que franqueei a dupla porta envidraçada, deixando a noite gelada sozinha lá fora. Seguimos pelo vestíbulo até à rotunda central do hotel e entramos no bar. Aquele sítio era verdadeiramente impressionante, e o lustre central da sala fazia realçar ainda mais a alegria que mostravas no sorriso. Durante as conversas sociais só pensava em estar longe dali, contigo. Bebi um whisky e pensei em Hemingway. Quantas bebedeiras monumentais terá ele apanhado ali? Ri-me. Devia ser um companheirão.
O jantar foi marcado pelo rigor e excelência do serviço e pela simpatia das senhoras idosas entre as quais fui sentado. Tanta simpatia que quase não me deixaram falar contigo, colocada no outro extremo da mesa redonda. Da eloquência dos oradores, não sei apreciar. Porque, quando todos se calaram para escutar a oratória, o meu olhar encontrou finalmente o teu. E vi o momento em que também tu me viste, e os teus olhos encontraram os meus. E aí, já mais nada ouvi. Foi como se estivéssemos fora daquele lugar, sozinhos. Sem sair do sítio, sem nos movermos, estivémos longe. Vi como os teus olhos procuraram nos meus os pensamentos que eu sabia serem iguais aos teus. E tu reparaste quando eu fiquei sem uma ponta de ar nos pulmões, mas ninguém mais percebeu. Era só eu e tu, durante um tempo que não parecia curto nem eterno, mas perene. Não existia mais ninguém no mundo, quando tu me olhaste...
O cocktail posterior não contaria com a nossa presença. Lá fora, já o porteiro abria a porta do táxi para entrarmos. A noite era um gigante de frio e escuridão e as nuvens de neve ameaçavam. Mas as incontáveis luzes de Natal faziam a vez de estrelas e o céu parecia muito mais próximo da terra.
Bitaites-[ Bitaites.]
O jantar foi marcado pelo rigor e excelência do serviço e pela simpatia das senhoras idosas entre as quais fui sentado. Tanta simpatia que quase não me deixaram falar contigo, colocada no outro extremo da mesa redonda. Da eloquência dos oradores, não sei apreciar. Porque, quando todos se calaram para escutar a oratória, o meu olhar encontrou finalmente o teu. E vi o momento em que também tu me viste, e os teus olhos encontraram os meus. E aí, já mais nada ouvi. Foi como se estivéssemos fora daquele lugar, sozinhos. Sem sair do sítio, sem nos movermos, estivémos longe. Vi como os teus olhos procuraram nos meus os pensamentos que eu sabia serem iguais aos teus. E tu reparaste quando eu fiquei sem uma ponta de ar nos pulmões, mas ninguém mais percebeu. Era só eu e tu, durante um tempo que não parecia curto nem eterno, mas perene. Não existia mais ninguém no mundo, quando tu me olhaste...
O cocktail posterior não contaria com a nossa presença. Lá fora, já o porteiro abria a porta do táxi para entrarmos. A noite era um gigante de frio e escuridão e as nuvens de neve ameaçavam. Mas as incontáveis luzes de Natal faziam a vez de estrelas e o céu parecia muito mais próximo da terra.
quinta-feira, dezembro 18, 2003
Adeus
Como se houvesse uma tempestade
escurecendo os teus cabelos,
ou, se preferes, minha boca nos teus olhos
carregada de flor e dos teus dedos;
como se houvesse uma criança cega
aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve - e tu calavas
a voz onde contigo me perdi.
Como se a noite se viesse e te levasse,
eu era só fome o que sentia;
Digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde teu corpo principia.
Como se houvesse nuvens sobre nuvens
e sobre as nuvens mar perfeito,
ou, se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.
Eugénio de Andrade
Bitaites-[ Bitaites.]
escurecendo os teus cabelos,
ou, se preferes, minha boca nos teus olhos
carregada de flor e dos teus dedos;
como se houvesse uma criança cega
aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve - e tu calavas
a voz onde contigo me perdi.
Como se a noite se viesse e te levasse,
eu era só fome o que sentia;
Digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde teu corpo principia.
Como se houvesse nuvens sobre nuvens
e sobre as nuvens mar perfeito,
ou, se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.
Eugénio de Andrade
segunda-feira, dezembro 15, 2003
O homem da rua
Não sei o seu nome. É um homem magro, com óculos grossos e que tem um defeito de nascença numa das pernas, o que o faz mancar. Deve já ter passado bem os sessenta anos. Durante muitos anos lembro-me de o ver trabalhar em várias lojas e cafés da baixa, e cumprimentava-o com um aceno de cabeça ou um sorriso tímido. Ele era mais um homem para todo o serviço do que empregado de mesa ou de balcão. Levava e trazia coisas dos armazéns, varria as lojas, substituía nas férias um seu colega empregado de mesa. Lembro-me que era sempre amável e respeitador dos clientes, mesmo com aqueles que nem sempre o mereciam. Quando era pequeno e saía, muitas vezes já noite, da estação de comboios e ia tomar um café antes de apanhar o autocarro, lá estava ele. A empilhar as cadeiras do café em cima das mesas ou a varrer as beatas dos cigarros dos clientes do balcão. Esse café fechou há já muitos anos, substituído por um McDonald’s. Num dia são cafés que conhecemos toda a vida, no outro, pseudo-restaurantes que vendem nacos de carne de qualidade duvidosa. E com eles desaparecem aqueles empregados à antiga, eficazes e capazes de fazer do seu um ofício honrado. E entre eles, sempre de um lado para o outro, o homem magro, manco e de óculos grossos.
Escrevo isto porque voltei a encontrá-lo, depois de tantos anos de ausência. Estava numa esquina da baixa a pedir esmola, sentado num banquito, com uma caixa de cartão aos pés, com algumas poucas moedas. De tal maneira fiquei estupefacto que lhe perguntei o que fazia ali. A minha expressão de surpresa era tanta que a pergunta lhe deve ter soado a repreensão, pois pareceu envergonhado, e fez um gesto vago com a mão enquanto me disse “estou sempre aqui, e no Natal faz-se mais algum”. Perguntei-lhe como era isso de estar sempre ali, e ele contou-me uma história de amargura e azar, o café que fechou para ser um McDonald´s, a invalidez e a idade avançada que lhe fechavam todas as portas. A rua fria, a solidão e a miséria à espera. Senti-me ainda mais envergonhado que ele. Dei-lhe o que podia, estendendo-lhe a nota na mão idosa, do mesmo modo que há anos atrás lhe dava o dinheiro para pagar o lanche. Não me atrevi a deixá-la na caixa de cartão, junto à sua perna defeituosa. Fazê-lo desse modo seria dar esmola. E eu a esse homem não darei esmola nunca.
Bitaites-[ Bitaites.]
Escrevo isto porque voltei a encontrá-lo, depois de tantos anos de ausência. Estava numa esquina da baixa a pedir esmola, sentado num banquito, com uma caixa de cartão aos pés, com algumas poucas moedas. De tal maneira fiquei estupefacto que lhe perguntei o que fazia ali. A minha expressão de surpresa era tanta que a pergunta lhe deve ter soado a repreensão, pois pareceu envergonhado, e fez um gesto vago com a mão enquanto me disse “estou sempre aqui, e no Natal faz-se mais algum”. Perguntei-lhe como era isso de estar sempre ali, e ele contou-me uma história de amargura e azar, o café que fechou para ser um McDonald´s, a invalidez e a idade avançada que lhe fechavam todas as portas. A rua fria, a solidão e a miséria à espera. Senti-me ainda mais envergonhado que ele. Dei-lhe o que podia, estendendo-lhe a nota na mão idosa, do mesmo modo que há anos atrás lhe dava o dinheiro para pagar o lanche. Não me atrevi a deixá-la na caixa de cartão, junto à sua perna defeituosa. Fazê-lo desse modo seria dar esmola. E eu a esse homem não darei esmola nunca.
sábado, dezembro 13, 2003
Luz no mar da noite
Luz no mar da noite.
Vejo regressar alguém a mim
Que pensava ter perdido para sempre,
Cada noite te disse adeus.
A imagem da minha alma abraçada
À tua alma por mim amada
E tocar-te.
Tiago Lopes
Bitaites-[ Bitaites.]
Vejo regressar alguém a mim
Que pensava ter perdido para sempre,
Cada noite te disse adeus.
A imagem da minha alma abraçada
À tua alma por mim amada
E tocar-te.
Tiago Lopes
quinta-feira, dezembro 11, 2003
O longo e indelével rasto do não-vivido
Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida.
Há tanta cousa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sôbre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sôbre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.
Fernando Pessoa, 19-11-1935
Bitaites-[ Bitaites.]
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida.
Há tanta cousa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sôbre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sôbre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.
Fernando Pessoa, 19-11-1935
segunda-feira, dezembro 08, 2003
Limbo
Enquanto me sento no banco de metal e acendo um cigarro, vejo-me com mais duas horas de espera pelo vôo que me levará ao sítio de onde vim. Entre uma e outra baforada, penso no que são, verdadeiramente, os aeroportos. Sítios de ninguém, território internacional. Não pertencem a nenhum país nem nenhuma pessoa lhes pertence a eles, embora muitos milhões de pessoas circulem por eles todos os dias, incessantemente. Um limbo, um sítio indefinível que fica entre a partida e o destino, entre o destino e o regresso.
Um palco onde a multidão humana que passa representa todos os sentimentos exprimíveis pelo homem: amor, dor, tédio, saudade, optimismo, esperança, ódio, medo, dúvida... De tudo se vê no limbo do aeroporto, pessoas que partem sem saber se voltam, pessoas que voltam sem saber se ficam, pessoas que chegam e ficam, pessoas que partem e nunca mais voltam. Os rituais também são os mesmos nos quatro cantos do mundo, as lágrimas, os abraços, as flores, os gritos e canções, as orações, o último olhar, o aceno, as promessas. As promessas...
Sozinho no aeroporto, na partida e no regresso, na origem e no destino, se calhar tenho a ocasião de ver as coisas do lado de dentro do palco, de ver a vida a fazer um compasso de espera entre a chegada ao limbo e a partida para outro destino. A chegada e a partida são parte da mesma viagem. Todas as chegadas e partidas que fazemos nas nossas vidas são parte da mesma e única viagem. Só os momentos no limbo as seccionam e fazem com que pareçam etapas distintas. Só fazemos um check-in na vida. Cada encontro é uma despedida de algo, assim como cada despedida é um reencontro com alguma coisa. E assim, compreendo que cada um desses compassos de espera, desses seccionamentos das estapas da nossa vida, não são mais do que a própria vida que fazemos. Ainda que no limbo dos aeroportos pareça vista de fora do nosso próprio corpo.
Bitaites-[ Bitaites.]
Um palco onde a multidão humana que passa representa todos os sentimentos exprimíveis pelo homem: amor, dor, tédio, saudade, optimismo, esperança, ódio, medo, dúvida... De tudo se vê no limbo do aeroporto, pessoas que partem sem saber se voltam, pessoas que voltam sem saber se ficam, pessoas que chegam e ficam, pessoas que partem e nunca mais voltam. Os rituais também são os mesmos nos quatro cantos do mundo, as lágrimas, os abraços, as flores, os gritos e canções, as orações, o último olhar, o aceno, as promessas. As promessas...
Sozinho no aeroporto, na partida e no regresso, na origem e no destino, se calhar tenho a ocasião de ver as coisas do lado de dentro do palco, de ver a vida a fazer um compasso de espera entre a chegada ao limbo e a partida para outro destino. A chegada e a partida são parte da mesma viagem. Todas as chegadas e partidas que fazemos nas nossas vidas são parte da mesma e única viagem. Só os momentos no limbo as seccionam e fazem com que pareçam etapas distintas. Só fazemos um check-in na vida. Cada encontro é uma despedida de algo, assim como cada despedida é um reencontro com alguma coisa. E assim, compreendo que cada um desses compassos de espera, desses seccionamentos das estapas da nossa vida, não são mais do que a própria vida que fazemos. Ainda que no limbo dos aeroportos pareça vista de fora do nosso próprio corpo.
quinta-feira, dezembro 04, 2003
Como queria ser quando fosse grande
Cavaleiro andante
estrela marginal
sobre o Rocinante escravo de metal
Um acorde rasga o céu
raio negro a cavalgar o som
e cavalgar sozinho
e cavalgar
Viverá pra sempre em nosso coração
o moinho, o vento, nova geração
um menino vai crescer
procurando em cada olhar o amor
e caminhar sozinho
e caminhar
Tanta gente se esconde do sonho com medo de sofrer
tanta gente se esquece que é preciso viver
Combater moinhos, caminhar entre o medo e o prazer
Somos todos na vida, qualquer um de nós,
vilões e heróis
vilões e heróis
Seja onde for, qualquer lugar, levar
a luz que te conduz
Jamais abandonar
o dom que te seduz
Poema de César Camargo Mariano
"Só para mim nasceu Dom Quixote e eu para ele:
ele para praticar ações e eu para escrevê-las. Somos um só (...)"
Miguel de Cervantes
Eurico Cebolo Fan Club
Ainda que um pouco fora do registo desta beluga, quero divulgar a homenagem que começou a ser feita ao grandioso artista português Eurico A. Cebolo. Esta magnânime estrela foi recentemente alvo da criação do Eurico Cebolo Fan Club. A iniciativa partiu da sua fã número um desde sempre, Xobineski Patruska. Últimas notícias, produção artística, boatos sobre a estrela... está tudo lá!
Vão lá, deliciem-se e viciem-se no Cebolo!
terça-feira, dezembro 02, 2003
A clarividência de Álvaro de Campos
Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células noturnamente conscientes
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atômica das coisas,
Pelas paredes turbihonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...
Bitaites-[ Bitaites.]
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células noturnamente conscientes
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atômica das coisas,
Pelas paredes turbihonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...